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Filhos da Morraria

Filhos da Morraria: "
Isolados pela natureza, moradores dos Lençóis Maranhenses sobrevivem de peixes 'caídos do céu' e do artesanato de buriti

Deu no sítio da EPTV

José Silva Araújo, lavrador. Sônia Maria Cabral, artesã. José Ribamar Medeiros, pescador. Ivanilson Souza, estudante. Raimundo Santana Lisboa, músico. Carmelita Pereira, artesã. Ninguém sabe ao certo quantos eles são. Mas suas histórias se repetem entre as centenas de moradores da região, que nós, do Sul, aprendemos a chamar de Lençóis Maranhenses. Para eles, as dunas são ‘morros’. E, como se estendem até o horizonte, juntas são a ‘morraria’.

As dunas são resultado de um embate de dez milhões de anos: pequenos e grandes rios carreiam a areia fina e clara de quartzo para o oceano. As fortes correntes marinhas e os ventos alísios devolvem a areia para a terra, onde se acumula na forma de dunas de até 20 metros de altura. O leva-e-traz rendeu histórias de ‘morros’ engolindo uma tribo inteira de índios caetés, soterrando povoados, e mesmo um aeroporto. A areia cobre tudo o que se coloca em seu caminho.

Essa imensidão de dunas forma um triângulo entre o Golfão do Maranhão, a leste da Ilha de São Luís, e o rio Preguiça. O lado maior tem 100 km de extensão, no litoral, com uma ponta que adentra o continente, para o Sul, por 50 km. Uma área de 155 mil hectares desse ecossistema singular está legalmente preservada desde 1981, com a criação do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses.

Bela para muitos, ameaçadora para alguns, a paisagem, vista do alto, lembra mesmo lençóis estendidos para secar ao sol. Por terra, com as primeiras dunas à frente, a sensação é de entrar num deserto. Vencido o primeiro ‘morro’, porém, logo descobrimos que a área nada tem de ‘Saara brasileiro’, como acabou apelidada. Nos Lençóis, chove 320 vezes mais do que no Saara: a média anual é de 1.600 mm, contra os irregulares 5 mm do temido deserto africano.

Apenas 60% da ‘morraria’ é areia. O restante é uma profusão de lagos, igarapés e lagoas de água doce que desaparecem na seca (agosto a dezembro) e ressurgem na estação úmida (janeiro a julho). Mesmo quando as lagoas secam, basta cavar um metro para ter água em abundância. O lençol freático quase superficial mantém os moradores nesse ‘deserto de fachada’, onde nem falta vida, nem falta água.

Dentro do Parque Nacional existem 600 famílias, espalhadas em ‘oásis’. Os mais isolados - Queimada dos Britos, dos Paulos e Baixa Grande - são quase inatingíveis: ilhas de vegetação em meio às dunas, aonde só se chega mesmo a pé ou com tropas de mulas. Em alguns povoados, a locomoção depende de pequenas embarcações. Na areia ou na água, a vida na ‘morraria’ é determinada pelas chuvas. Não raro, depois de um verão chuvoso, cidades inteiras ficam isoladas.

Para entender a gente simples, que persiste num lugar onde tudo parece primitivo, é preciso vencer o isolamento e os obstáculos naturais. Foi o que fizemos, a partir de Barreirinhas. Como andarilhos, quase errantes, entre labirintos traçados pelas dunas no areal, chegamos ao primeiro destino, Marcelino, à margem do Rio Preguiça. Cinqüenta minutos subindo o rio e avistamos um igarapé. Desembarcamos e subimos uma ladeira até alcançar a única rua, com pouco mais de 20 casas enfileiradas. Em Marcelino, quem não é Cabral, é Silva. Os homens todos os dias saem para a pesca, enquanto as mulheres trançam a palha e a seda do buriti, na confecção de utensílios.

Das mãos dessas mulheres sai artesanato de qualidade, da mesma palmeira frondosa que dá a palha para cobrir as casas, o óleo de cozinhar, o fruto de fazer doce e a seda para os objetos caseiros, como o cofo (cesta para guardar o pescado) e o tipiti (saco de espremer mandioca).

Entramos na 'Casa das Artesan (sic) do Povoado de Marcelino'. As paredes estão tomadas por bolsas e tapeçarias, de cores e pontos variados. Tudo natural, retirado dos quintais, inclusive os corantes. A matériaprima principal é o fio de seda, feito do ‘olho’ do buriti (Mauritia flexuosa).

Carmelita Pereira da Silva, 63 anos, é uma das 25 mulheres que procuram trançar uma vida melhor: 'Comecei aos dez anos, aprendi com as minhas avós. Só que não tinha qualidade. Depois de uma oficina no Sebrae, a gente aprendeu a ter qualidade nas tinta. A gente descobriu muitas formas e cores: do urucum, piquiá, salsa, mamorana, bicuíba e até da casca de cebola'.

Sônia Maria Batista Cabral é a mais nova do grupo. Tem 33 anos e fala com firmeza de um trabalho que é fruto da conscientização. 'Quando a gente tá muito aperreada, com encomenda grande, os homens vão pro mato tirar os frutos, raízes e folhas pra tinta e também o linho, a seda. O ‘olho’ do buriti, que a gente tira, não pode ser todos os meses. As pessoas que trabalham para o nosso grupo são conscientizada, não pode tirar um ‘olho’ qualquer, de pé pequeno. Tem de ter pelo menos um palmo pra não matar a palmeira. Nós temos cuidado também com o replantio. A gente sobrevive hoje, tira o nosso sustento do artesanato. Tem de cuidar do buriti!', recomenda.

Como em Marcelino, em Tapuio a matéria-prima da principal atividade sai dos quintais. O povoado é bem maior, mais de três mil moradores, e do solo, sai a argila para a fabricação de tijolos e ladrilhos. A produção é artesanal e reduzida. Nas chuvas, o trabalho é suspenso, pois não existem galpões para a estocagem. José Maria Diniz Araújo, 26 anos, toca uma das 4 olarias: 'A gente é um povo que tem renda baixa. Nem sempre temos condições de comprar o cimento, então acaba produzindo, com a argila, a massa para tecer as paredes. Quando não tem produção de tijolos, a gente tira o peixe para o sustento da família e uma renda. Quem não trabalha no tijolo, pesca ou está na roça'.

Na roça de mandioca, é claro! A farinha, como o peixe, não falta na mesa dos 'filhos da morraria'. É assim na casa do lavrador José Ribamar Araújo, 53 anos. Casado, 5 filhos, 11 netos, ele mantém a casa de farinha na beira do Rio Preguiça há pelo menos 30 anos. 'Todos moram aqui, quem não trabalha não come, não senhora! A farinha é a base. Eu venho da roça com a carriola cheia, na casa de farinha a gente descasca, se preferir faz a puba, a farinha mais grossa, ou a mimosa, que a gente chama a mais fina. Para fazer a puba, tem de deixar a mandioca de molho no rio três dias, depois tira os talos e leva para o espremedor. Rala e põe no tipiti para secá e no cocho a gente penera. Daí é jogá no forno umas três horas e temo farinha preparada'.

Atravessamos para o outro extremo do Parque, na direção de Santo Amaro. Saindo da estrada de asfalto, são 35 km de areião. Passamos por três vilas; um carro atolado e nenhum trator; crianças voltando da escola, numa caminhada de duas horas diárias, e uma tropa de mulas, vinda do interior, Guariba, seguindo para beira-mar, Travosa. Lá, os lavradores trocam a farinha por peixe seco, com os pescadores. E ainda incluem no negócio uma pinga de mandioca, a tiquira.

Na caravana de animais, cestos carregados e homens feitos, viajam dois garotos, de 8 e 6 anos. O mais novo mostra cansaço, mas não esquece das apresentações: 'Meu nome é Leonardo, o burrico chama Leandro'. Grandes alagamentos interrompem a trilha. Para vencêlos, além de um carro com tração, é preciso muita habilidade. O carro parece mergulhar em grandes banheiras. Quase 4 horas para meros 35 km e ainda temos pela frente o Rio Alegre, última barreira natural antes da pequena Santo Amaro, onde 80% dos habitantes são pescadores. Segundo eles, o rio quase não tem peixes. O alimento vem das lagoas, que as chuvas formam entre as dunas. Embora desapareçam por completo na seca, logo estão povoadas por peixes, como num passe de mágica.

Os mais antigos acreditam que os peixes “caem do céu com a chuva ou descem escorregando pelo arco-íris”. Já os pesquisadores apontam a ocorrência de espécies adaptadas, cujas ovas resistem à falta de água, enterradas na areia. Com as primeiras chuvas, eclodem e os peixes reaparecem nas lagoas.

'Nóis aqui tem mais de não sei quantas mil pessoas que se sustenta do peixe, nos três lagos que mantêm tudo. Às vezes a gente diz: rapaz, o peixe acabou! Mas que nada, quando dá fé tem peixe de novo, que faz fartura. Esse movimento, do rio para o lago, do lago para a morraria. Porque onde reproduz mais peixe é na morraria', garante, na sua própria versão do ‘milagre’, José Ribamar Lisboa Medeiros, de 56 anos.

Os pescadores utilizam grandes canoas a vela, chamadas de garité. Com pequenas redes - as caçoeiras - vão tocando e cercando a peixarada para uma das margens. Com sorte, o cofo fica cheio: cará, traíra, cangatiba, pataca, piaba, jacundá e tilápia. Tilápia? Isso mesmo! A espécie invasora foi introduzida na região e agora é um dos principais pescados naquelas bandas, uma alteração ambiental sem volta!

Os homens também usam armadilhas e redes, armadas à noite e recolhidas de dia. Ou tarrafas, principalmente na seca, quando nos barcos se recolhem as velas, por causa dos ventos fortes, e os pescadores caminham pelas lagoas, lançando a sorte.

E tem ainda o Raimundo Santana Lisboa, o Raimundinho, que até a música colhe no quintal. Da folha de guajiru, um pequeno arbusto de zona alagada, desde menino ele tira música, como se toca um instrumento de sopro. Hoje ele acompanha dois colegas - Domingos Correia, no pandeiro, e Domingos Aguiar, na bateria – em toadas das festas de São Gonçalo, em forrós e apresentações, conhecidas até na Capital, São Luís.

Depois de navegar nos rios e lagoas, percorrer trilhas de areia, caminhar entre dunas, e conhecer o dia-adia dessa gente, a preocupação é com seu futuro incerto. O que seria dos ‘filhos da morraria’, sem o buriti, sem a argila, sem a terra para a mandioca e sem os quintais, que começam a ser engolidos por grandes empreendimentos de turismo? E o peixe? Com a multiplicação de restaurantes, pousadas e hotéis, o aumento da demanda pressiona os estoques. Sem um (urgente) ordenamento pesqueiro, esses milhares de brasileiros podem ficar reduzidos à tilápia como alimento...

O governo do Maranhão estima um aumento no turismo de 15%, só nesse ano! A visita vale mesmo a pena. Mas, ao planejar sua viagem, verifique antes se está sendo realmente ‘guiado’ por locais de visitação permitidos. Procure saber mais sobre o hotel escolhido, sobre a forma como se estabeleceu na região, se a construção é regular, se o esgoto é coletado e tratado. Pense nas veredas de buritis e nas matas de carnaúbas. Pense nas mulheres de Marcelino. Caminhe nas dunas no ritmo da música do Raimundinho. Assim como a fauna e flora locais, o futuro dos ‘filhos da morraria’ também depende de você.

Os riscos de excesso

A dificuldade de acesso ainda é o único trunfo da natureza singular dos Lençóis Maranhenses. O Parque Nacional, de 155 mil hectares, criado em 1981, só teve seu plano de manejo homologado em 2003. Conta atualmente com cinco funcionários e a chefe da unidade, Érica Fernandes Pinto, 29 anos. 'O básico é definir e garantir que só as áreas previstas no plano de manejo sejam visitadas, porque, nos feriados e nas férias, a capacidade de carga já é superada', diz.

A concentração de visitas é o maior problema. Na baixa temporada, quando as lagoas estão secas, alguns atrativos são super explorados. 'O Ibama fez algumas operações de contagem nas épocas de pico e chegou a registrar 700 pessoas por dia, numa lagoa onde a capacidade de carga é de 50 visitantes. Isso tem uma série de conseqüências. Vende-se muito a idéia de isolamento, de lugar inóspito... Aí você chega numa lagoa e encontra 700 pessoas...', continua. A proposta de Érica é ordenar a visitação. Para isso, trabalha com as agências locais, palestras com os guias e motoristas dos carros que levam os turistas para os atrativos, e com as comunidades locais.

Outro grande problema detectado é a coleta de esgotos. Não existem fossas apropriadas e o lençol freático acaba contaminado. Segundo Antonio Carlos Leal de Castro, que coordenou parte dos estudos do plano de manejo do Parque, o maior risco não está na manutenção dos moradores tradicionais, mas na construção de novas casas e estabelecimentos. A tendência das populações nativas é de colaborar, pois eles são os maiores interessados em preservar o ambiente em que vivem.
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